Poesias

Antes que os bárbaros cheguem

Quando morto estiver o desejo
nuns vergões do corpo
amontoado de pedras –
quando morto estiver o tigre
nuns vaus do espírito
amontoado de esperas –
quando morto estiver o sonho
numas eivas da carne,
amontoado de humilhações -
e até eu me livrar do vexame que não sou
(em bandos abraçar-me profanado e liberto
por meus braços e pelos do mundo também)
inda há de restar de forte o amor antes da morte,
um não sei quê a roçar o peito de alegria,
uma súbita invasão de crianças
e quem sabe... por tanto andar o tempo
tudo o que não se perde de eternidade:
os besouros, os grilos, os olhos de um imbecil,
o nariz arrebitado das palavras
a esgueirar-se pelas lucernas de sol, o riso
duns rebentos em renovos se entretecendo
à sombra de tudo que é corpo e breve duração
como bela era a flor e bom o cavalo
na extinta estação dos poetas e das rosas.

Quando morto estiver o povo –
os tigres castrados,
quando morto estiver o corpo –
as palavras supuradas,
quando morto estiver o gozo -
as culpas mendicantes,
um menino ainda há de bater
um tambor obstinado
antes que os bárbaros cheguem
como um sonho bate palmas
por teu nome a clamar em coro
o povo, o corpo, o gozo
ente clarins convocatórios
antes que os bárbaros cheguem
por vias de sangue, por vias de armas
e esta mão pousada no teu coração
risque um fósforo,
o primeiro instinto da noite.

E quando plantas a rosa da manhã,
a rosa de ti em mim entre vento e febre
sendo eu bem eu pela vez primeira
criando forma e alma e espírito
e não sombra penada de outro
antes que os bárbaros cheguem
que não são outros senão eu mesmo fora de mim
a mentir o nome, a engolir o grito.
E como saber quem sou eu, criar a vida
prometida, vida que ainda não salta
pela boca, vida que se infecta pelas
babas da loucura e faz falar o mudo,
ouvir o surdo em mim, o cego enxergar?
Que os dentes dancem de tanto morder,
dancem, dancem, a procurar destinos, sentidos
por tuas escadas em curvas, subir, descer,
antes que os bárbaros cheguem e levem
os testemunhos da infância até Tróia.

Agora que sepultamos a Esperança,
podemos recomeçar, cantar a dor que está partindo
do corpo para os sentidos, o poema a vazar dos poros,
da cruz para as conjuras da manhã
até o baile da noite, quando a alegria
estará tão perto da alma quanto os olhos
do coração, antes que os bárbaros cheguem.

Paulo Roberto do Carmo


12/01/2010

 

 

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